30.5.03

Texto publicado hoje no Globo:

Sobre homens e macacos
GERALDO LUÍS LINO

A má percepção da ciência é tão ruim quanto a má interpretação da religião. A primeira tem levado ao materialismo mecanicista, que considera o universo e o mundo como um vasto conjunto de maquinismos regidos por leis deterministas, e reduz o homem à condição de "máquina animada" desprovida de qualquer sentido de propósito ou transcendência.

A outra conduz ao fundamentalismo, ao radicalismo e ao fanatismo dos que se julgam detentores da verdade e são intolerantes com as discordâncias.

Juntas, ambas têm causado grandes desorientações, influindo na inquietação fundamental que tem impelido o homem a indagar sobre a sua natureza e o seu lugar na ordem universal, desde os primórdios de sua existência como gênero ? empreitada que não pode prescindir nem da ciência nem da religião.

Ao contrário do que sugere a corrente materialista, que se espelha no artigo de Silio Boccanera "somos todos macacos", inexiste qualquer oposição fundamental de princípios entre a ciência e a religião. Como diz a encíclica "Fides et ratio", do Papa João Paulo II, "a fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva até a contemplação da verdade".

Para surpresa de alguns materialistas, até mesmo a presença ativa de Deus no universo ou, como preferem alguns, uma inteligência oculta tem sido reconsiderada por um número crescente de cientistas, em face das evidências de que a extraordinária combinação de condições favoráveis à emergência da vida e da consciência no cosmo não pode ser obra do mero acaso.

Em seu livro "O universo inteligente", o célebre astrofísico inglês Fred Hoyle, ateu confesso, admite não encontrar resposta melhor para o enigma. Em "Superforça", o físico Paul Davies, igualmente ateu, constata "poderosas evidências de que há alguma coisa acontecendo por trás de tudo. A impressão de desígnio é esmagadora". Em outro livro, "Deus e a nova física", ele chega a afirmar que "pode parecer bizarro, mas em minha opinião a ciência oferece um caminho mais firme para Deus do que a religião".

Em seu artigo, Silio Boccanera menciona um dos mais ativos porta-vozes do materialismo acadêmico atual, o biólogo Richard Dawkins, com sua tese utilitarista de que o objetivo da vida, inclusive a humana, se encerraria na própria existência e reprodução.

Essa posição pode se aplicar aos chimpanzés, mas em hipótese alguma a um ser cuja capacidade cerebral ultrapassa em muito o necessário à simples subsistência, sendo mais adequada a uma espécie destinada a explorar o universo em todas as suas dimensões.

Ao contrário das demais espécies animais, o homem é o único ser cujo cérebro não vem "pré-programado" geneticamente para que o destino biológico da espécie se cumpra em um único indivíduo, o que justifica a enorme diversidade étnica e cultural que nos caracteriza.

Quanto à coincidência genética de 99,4% entre o homem e o chimpanzé, que tem provocado tanto alarido, ela nada significa diante do abismo intransponível entre as duas espécies: o "salto ontológico", na expressão de João Paulo II.

Por mais inteligentes que sejam, falta aos chimpanzés a inteligência especulativa peculiar ao homem à qual São Tomás de Aquino atribui a nossa semelhança com o Criador. Por esse pequeno detalhe, símio algum jamais será capaz de produzir algo como as pinturas das grutas de Altamira e Lascaux, as esculturas de Michelangelo, as peças de Shakespeare, as sinfonias de Beethoven ou até mesmo as idéias de Richard Dawkins e seus admiradores.

Portanto, a mera sugestão de incluir o simpático mono no gênero Homo seria risível se não fosse esdrúxula. Em tempo: a coincidência genética entre o homem e o rato é de 99%.

Definitivamente, não somos macacos. Até prova em contrário, somos os vanguardeiros da evolução. Repetindo as palavras do paleontólogo e padre francês Frédéric M. Bergounioux: "Se nada pode barrar o avanço da vida, é porque ela se dirigia em direção ao homem. Exatamente ao fim da estrada estava o seu lugar, e nenhum revés haveria de permitir que se pusesse em perigo esta última realização."

GERALDO LUÍS LINO é geólogo.





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