25.2.03

Talvez quem sabe uma pequena pérola da Literatura Universal perdida num mar de blogs...

Parabéns, Marcurélio. Se existe "inveja positiva", acho que é isso: eu gostaria de ter escrito este texto...

O urubu

Então, hoje de manhã fui até o fumódromo para minha já tradicional caça à capivara. Não vi nenhuma, claro. Mas vi três garças. E o urubu que voa baixo resolveu voltar. Ficou passando na janela

- Aê, mané! Manezão!

Cansado de tanta petulância, achei que era hora de chamá-lo para conversar. Abri a janela, acenei, e ele não se fez de rogado.

- E aê, mané?

- Beleza, urubu. Senta aí.

- Sentar? E urubu lá tem bunda?

- Tá, tá. Empoleire-se num canto aí.

- Melhor. E aê, mané? Remoendo tudo aí dentro e procurando capivaras no rio?

- É isso aí. Sabe como é. As coisas acontecem com a gente, e a gente fica triste. Acho que você entende.

- Bah, você sabe que não é verdade. Acontecendo alguma coisa, ou não acontecendo nada, você vai sempre ser triste.

- Talvez. Meu irmão disse que eu fico buscando as coisas ruins na minha vida, em vez de me apegar às boas.

- É, deve ser por isso. Mas tem aquela outra coisa também...

- O quê?

- Você sabe.

- Sei?

- Claro que sabe. A consciência da morte. Você pensa nela o tempo todo. E, como na beira de um abismo, fica paralisado por toda a grandeza e terror que há na morte.

- Hum... Urubus não têm consciência da morte?

- Temos. Mas aceitamos melhor. A morte é nosso alimento.

- Ué, nosso também. Comemos plantas mortas, animais mortos.

- Não é a mesma coisa. Você nunca matou um boi. Há pessoas lá longe que fazem isso para você, e a carne chega até você sem se parecer em nada com um boi.

- E que diferença faz?

- Faz toda a diferença! Veja bem, nós urubus esperamos a morte. Não aceleramos o processo. Esperamos que morra um boi, um carneiro, um rato, até uma de suas tão queridas capivaras. E então vamos lá, com muita reverência, nos alimentarmos dos restos daquele ser. Não tentamos fingir que aquilo é um bife. Não passamos pelo fogo e pelo sal, não separamos o pêlo da carne. Encaramos a morte crua.

- Acho que entendi.

- Muito me surpreende, sendo você o grande mané que é.

- Hum... Sabe? Eu nunca vi um urubu morto.

- Isso é um segredo entre a morte e os urubus.

- Respeito isso.

- Que bom. Então, vou nessa.

- Té mais, urubu. Gostei de ter essa conversa com você.

- Foda-se.

E saiu voando em círculos em direção ao Robocop.





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